Por Nayane Ramalho (Advogada Associada)
Por Nayane Ramalho (Advogada Associada)
Antes de mais nada, precisamos ter o conhecimento de que no Brasil o crime de estupro só é admitido na modalidade dolosa, ou seja, não existe “estupro culposo” no nosso ordenamento jurídico. Nos casos de estupro, sempre há intenção do agressor, ainda que para a satisfação do prazer sexual não seja necessária a conjunção carnal, por exemplo.
Conforme vimos nos últimos dias, a aberração jurídica de “estupro culposo” foi criada no julgamento do caso Mariana Ferrer, findado com a absolvição do acusado por ausência de provas.
O estupro é um crime que viola a dignidade sexual da vítima, inclusive, repita-se, para a consumação do delito é irrelevante que haja contato físico entre ofensor e ofendido. Isso porque, o bem jurídico protegido, qual seja, a dignidade sexual, diz respeito à vontade da vítima quanto o envolvimento lascivo.
Muitas vezes, os casos de estupro não possuem provas “concretas”, pois via de regra, são realizados de forma oculta, sem testemunhas, e por vezes não deixam vestígios, sendo essa, inclusive, uma das razões pelas quais a palavra da vítima, quando coerente e verossímil, é considerada prova de grande relevância para fundamentar uma condenação.
O legislador brasileiro decidiu por proteger a dignidade sexual da pessoa vulnerável, seja pela tenra idade, incapacidade intelectual ou mesmo incapaz de oferecer resistência. Por tudo isso, tendo sido comprovado que Mariana não estava em plena capacidade quanto ao seu poder decisório e de resistência, não restam dúvidas que o caso se amolda à conduta descrita no Art. 217-A, § 1º do Código Penal Brasileiro, estupro de vulnerável.
Com frequência, o que se vê é a absolvição por ausência de provas em casos de estupro, todavia, até então jamais havia se falado em estupro culposo, afinal essa figura não existe na legislação brasileira.
De acordo com o que foi publicizado por Mariana nas redes sociais sobre o processo, havia, em tese, provas que não foram consideradas pelo juízo.
O próprio comando sentencial divulgado, afere a materialidade e autoria delitiva (conjunção carnal e ruptura himenal recente), e ainda aponta que houve a comprovação de que a vítima havia ingerido álcool, todavia, o juízo sentenciante desconsiderou a vulnerabilidade da vítima aduzindo que “não teria ficado claro que apesar de estar alcoolizada (ou sob o efeito de substancia ilícita) estivesse sem condições de se opor a ação do acusado”.
Não à toa, o caso de Mariana tem tido enorme repercussão, pois para além da desconsideração do acervo probatório, e os argumentos de “ausência de dolo do acusado” e “ausência de comprovação da vulnerabilidade da vítima”, a audiência por si só é aterrorizante.
Sem adentrar no mérito do processo que corre em segredo de justiça, a audiência cujo vídeo foi divulgado, demonstram total afronta ao ordenamento jurídico, além de humilharem e ferirem ainda mais a dignidade de Mariana.
Incansável repetir o desfecho inédito e incrédulo do processo no qual se criou um pseudo tipo penal cujo resultado foi a culpabilização da vítima.
A perturbadora audiência demonstrou um posicionamento inaceitável do defensor do acusado, que para além de ultrapassar todos os limites éticos e morais à uma vítima de estupro, infringiu diretamente o Código de Ética da OAB e o Estatuto da Advocacia.
Faz parte do trabalho do advogado defender os interesses de seu cliente, no caso, buscar provar a inocência do acusado, todavia o que o vídeo demonstra é revoltante. Não se pode aceitar, sob nenhuma circunstância, que uma vítima (ou mesmo suposta vítima) seja colocada em situação tão constrangedora e desrespeitosa quando se busca a proteção do estado.
A promotoria, por sua vez, que representa o interesse da vítima, requereu a absolvição do acusado pela ausência de provas, embora, provas, em tese, não faltassem. Nem mesmo se manifestou de maneira veemente para fazer cessar as ofensas dirigidas à Mariana.
Melhor sorte não teve o magistrado, que deveria ter intervindo para garantir a dignidade da vítima. Manteve-se inerte, agindo tão somente para “permitir” a Mariana “recompor-se”, como se o problema daquele show de horrores fosse o choro e o desespero dela diante das agressões explícitas provocadas pelo defensor do acusado.
As responsabilidades de todos os envolvidos por ação ou omissão, precisam e devem ser apuradas pelos órgãos de correição.
Por tudo isso, é nosso dever social reforçar a importância de registrar episódios de violência nos órgãos competentes e apontam o caminho para que uma denúncia seja levada adiante.